Jogos são atividades sociais

Quando jogamos, estamos interagindo com outras pessoas ou simulacros. Se não há pelo menos uma noção de que existe outro ou mais jogadores, nos afastamos do centro do universo dos jogos e vamos em direção dos universos dos brinquedos e passatempos.

É importante notar que quando estudamos jogos, escolhemos, seguindo a maioria dos pesquisadores da área, estudar não os artefatos ou conjunto de regras que formam os jogos, mas sim a atividade como um todo. Uma justificativa para isso é que um jogo-artefato não está completo em si mesmo, ele é de, de certa forma, algo latente, que só atinge plenamente sua identidade quando jogado. Mesmo o jogo-artefato já é passível de várias interpretações. Um tabuleiro de Go com suas peças, por exemplo, permite que várias regras sejam criadas (por exemplo, Go e Go-Moku, jogos totalmente diferentes). Inclua as regras de Go e ele ainda estará sujeito a outras variações, como campeonatos, apostas, discussões entre os jogadores. Apenas reconhecendo o jogo como atividade, e não como objeto, podemos entendê-lo perfeitamente.

Isso não impede que outros pesquisadores não se interessem por jogos em um contexto mais limitado, como por exemplo o estudo das representações das peças de xadrez, o estudo da representação feminina em jogos de computador ou o estudo de mecânicas em jogos de tabuleiro, que poderiam, talvez, analisar apenas o jogo-objeto e não a atividade.

Inicialmente os jogos eram essencialmente atividades onde pessoas interagiam, porém com o advento das máquinas e posteriormente dos computadores, o segundo jogador ou o oponente pode ser virtual, dirigido por mecanismos específicos ou por software, possivelmente usando técnicas de inteligência artificial. O importante é que exista uma aparência de dois ou mais jogadores. 

O fato do adversário ser virtual pode ser visto como algo não-social. Porém o jogo tem outra perspectiva social, o de ele ser jogado dentro da sociedade, e onde os jogadores, mesmo quando jogando sozinhos, acabam interagindo com outros jogadores ou observadores daquele jogo, por meio de comentários, estudos de estratégias, etc.

Um jogo só existe em um contexto social onde regras são aceitas e acordadas. Mesmo em um jogo entre animais existem regras, como “não ferir o filhote” ou “devolver o graveto ao dono”. Aceitar essas regras não só é uma simulação da aceitação das regras da sociedade, como “não mentir” ou “não roubar”, como também é uma educação para aceitá-las.

Mas o que pode surpreender a muitos é o fato do conflito que acontece em um jogo é um fator de socialização. Nas palavras de Jesper Juul: “Controlar um personagem que bate um personagem controlado por outro jogador não significa que o primeiro quer atacar o segundo na vida real: significa que o entramos em um mundo complexo de interações simbólicas onde atacar alguém em um jogo pode ser um convite à amizade…” (Juul, 2009)

Jogos também são atividades sociais no sentido que estimulam a socialização. Mesmo jogando sozinho contra o computador o jogador passa a fazer parte de uma comunidade de jogadores, de pessoas com interesses similares. Essa comunidade usa um vocabulário próprio, possui “ritos de passagem”, “códigos de honra” que temos que aceitar para participar.

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Figura 1. Jogos são atividades sociais. Mesmo que o jogo seja para uma pessoa ele pode ser compartilhado de outras formas. (Foto original de Jim Larrison).

Algumas atividades solitárias podem ser fortemente semelhantes a um jogo no sentido estrito da palavra que podemos tranquilamente chama-las de jogo sem estender demais o sentido. Por exemplo, o jogo de computador Myst™ é basicamente uma coleção de quebra-cabeças. Porém, ele possui várias outras características semelhantes a milhares de outros jogos de computador, como uma história por trás que unifica todas as ações. Além disso, muitas pessoas se reuniram em torno de um computador ou até mesmo em folhas de papel para resolver os problemas apresentados, caracterizando a perspectiva social de Myst™ como um jogo.


Discutindo Assassinatos no Restaurante

Entre o ensino médio e a faculdade eu costumava participar de um grupo que se encontrava uma vez por semana para jogar RPGs, basicamente Dungeons & Dragons™ ou SpaceMaster ™. Ao fim da sessão de jogos frequentemente nos reuníamos em um restaurante próximo para comer algumas pizzas e, invariavelmente, grande parte da conversa era sobre o que tinha acontecido na sessão anterior.
Durante essa conversa várias vezes percebíamos o absurdo de nossas discussões no “mundo real”. Passávamos horas em um restaurante falando de monstros, mágicas, mortes e planos mirabolantes em voz alta, típica dos adolescentes, sem preocupação nenhuma com o que pensavam as pessoas em volta.
Imagine você, em um restaurante, ouvindo a mesa ao lado discutir detalhadamente como matamos o guarda, o coletor de impostos ou, com mais sorte, o ogro da floresta. Ou um reclamar que o outro roubou alguma coisa, o que fez com que a polícia perseguisse o grupo pela cidade.
Você chamaria a polícia?


Jesper Juul criou uma imagem bastante clara que mostra como o jogo é uma atividade social. Para ele, existem 3 quadros em que o jogo pode ser visto: o jogo como orientação ao objetivo, o jogo como experiência e finalmente o jogo no contexto social e normal. O jogador joga sempre dentro de um desses quadros, ou seja, ele joga para ganhar, mas isso inclui jogar para ter uma experiência que lhe agrada e que inclui o jogar para ter uma gerenciar uma situação social. Como exemplo, quando um adulto joga velha com uma criança pequena, provavelmente gerencia a situação cedendo algumas vitórias e ganhando outras partidas tornando o jogo muito interessante para a criança como disputa e aproveitando mais da situação, já que a disputa, na prática, não existe.

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Figura 2. Jogamos sempre dentro de uma perspectiva ou quadro social. (Sobre figura original de Jesper Juul).