(Esse é o primeiro de uma série de posts que apresentam e discutem uma definição de jogos adequada ao estudo da Ludologia. Próximo post Jogos são não produtivos)
A existência de uma discussão sobre o que é um jogo, ou se alguma atividade é ou não realmente um jogo pode surpreender quem a encontra pela primeira vez. Entretanto, no estudo de jogos, é importante entender o que estamos analisando ou o que estamos criando. Para isso, é melhor que o conceito de jogo esteja claro e que saibamos o quanto estamos nos afastando de um “jogo ideal” quando estamos criando um novo jogo.
O jogo ideal tem as características típicas do xadrez. Inicialmente, podemos seguir parte de uma definição simples proposta por Chris Crawford (Crawford, 2003), que exige, entre outras coisas, que um jogo seja interativo, tenha objetivos, competição e que permita que um jogador ataque o outro de alguma forma[1].
Quando deixamos de verificar uma dessas características, ou outras que veremos mais tarde, nos afastamos do jogo ideal. Em certo ponto, podemos nos afastar tanto que a atividade deixa de ser reconhecida como um jogo. Muitas vezes, porém, nos afastamos apenas um pouco e ficamos no espaço que Jesper Juul (Juul 2009) chama de casos de fronteira.
Alguns “jogos” como o xadrez são claramente um jogo. Neles, dois jogadores se alternam, fazendo jogadas válidas, segundo regras combinadas, perseguindo uma vitória (eliminar o rei adversário). Essas jogadas não só avançam o jogador, ou suas peças, em direção ao objetivo, como também podem atrasar o adversário ou suas peças, por meio de ataques, como “capturar” uma peça, posições ou estratégias.
Fig 1. Xadrez, um dos jogos mais jogados do mundo. (Foto por Christian V.)[2]
Outras atividades são similares a jogos, mas não são jogos “propriamente ditos”. Os passatempos solitários, como o “Minesweeper”™, são muito similares a outros jogos eletrônicos, podendo ser até tratados como jogos de uma forma mais geral, mas não são jogos na acepção mais estrita da palavra. Nos passatempos não temos um adversário e nem sofremos ataques.
É interessante notar que não há uma definição precisa e aceita na literatura sobre o que é um jogo. Porém, certamente todos reconhecem um jogo no dia a dia. Voltando a Jesper Juul, ele considera que jogos possuem regras fixas, resultado variável, resultado valorizado, consequências negociáveis, ligação do jogador com o resultado e esforço do jogador (Juul 2009). Nesse caso, jogos com regras flexíveis, como o surpreendente Nomic, um jogo inventado por Peter Suber cujo o movimento principal é mudar as regras do jogo, passam a ser casos de fronteira (Suber, 1996).
Outras coisas a que chamamos de jogos, mais especificamente os jogos de azar ou esportes, não são objetivo do estudo da área de jogos. A nossa forma de pensar ao criar um jogo está voltada ao entretenimento do jogador, ou, em jogos com propósito, na educação ou informação do jogador, enquanto os jogos de azar envolvem ganhar ou perder dinheiro e outras emoções bastante diferentes das que temos quando jogamos uma partida de Xadrez entre amigos.
Também estamos sujeitos, no estudo de jogos, a confusão que existe em línguas diferentes do português entre os sentidos de “brincar” e “jogar”: como “play” em inglês ou “jouer” em francês. Essa confusão é muitas vezes bem vinda, já que a fronteira entre que é um jogo e o que é uma brincadeira e o que é um jogo não precisa ser muito clara. Por exemplo, o brinquedo Pula Pirata™ não é verdadeiramente um jogo[3], apesar de ser anunciado e usado como um.
Uma definição para jogos
Baseado em várias definições de jogos encontradas na literatura e repetidas em diversos artigos introdutórios e também na observação e análise detalhada do que acontece quando jogamos, propomos a seguinte definição do que é um jogo, que servirá de baliza para nosso estudo.
Jogos são atividades sociais e culturais voluntárias, significativas, fortemente absorventes, não-produtivas, que se utilizam de um mundo abstrato, com efeitos negociados no mundo real, e cujo desenvolvimento e resultado final é incerto, onde um ou mais jogadores, ou equipes de jogadores, modificam interativamente e de forma quantificável o estado de um sistema artificial, possivelmente em busca de objetivos conflitantes, por meio de decisões e ações, algumas com a capacidade de atrapalhar o adversário, sendo todo o processo regulado, orientado e limitado, por regras aceitas, e obtendo, com isso, uma recompensa psicológica, normalmente na forma de diversão, entretenimento, ou sensação de vitória sobre um adversário ou desafio.
Essa definição foi baseada em definições prévias de (Caillois, 2001)(Huizinga, 1971)(Juul, 2009) (Crawford, 2003)(Salen, K. & Zimmerman, E., 2003), (Suits, 1978), (Sutton-Smith, Brian, 1997).
[1] Mais tarde, nesse capítulo, faremos uma definição mais elaborada.
[2] https://www.flickr.com/photos/shyald/409601105/in/gallery-93397741@N06-72157646775628069/ cb
[3] Não permite ataques e não existe, efetivamente, uma decisão consciente, já que o resultado de enfiar a faca no barril é aleatório.
Bibliografia
Amazon.com Inc., 2011. Amazon Mechanical Turk – Welcome. Available at: https://www.mturk.com/mturk/welcome [Accessed May 21, 2011].
Caillois, R., 2001. Man, Play and Games, University of Illinois Press.
Crawford, C., 2003. Chris Crawford on Game Design, New Riders Games.
Csikszentmihalyi, M., 2008. Flow: The Psychology of Optimal Experience 1ST ed., Harper Perennial Modern Classics.
Funk, J., 2012. Angry Birds Smashes the Billion-Download Mark. The Escapist : News :Angry Birds Smashes the Billion-Download Mark. Available at: http://www.escapistmagazine.com/news/view/117173-Angry-Birds-Smashes-the-Billion-Download-Mark [Accessed January 14, 2013].
Gibson, E., 2010. Super Mario celebrates 25th birthday News – – Page 1 | Eurogamer.net. Available at: http://www.eurogamer.net/articles/2010-09-13-mario-celebrates-25th-birthday [Accessed April 18, 2011].
Huizinga, J., 1971. Homo ludens: o jôgo como elemento da cultura, Editora da Universidade de S. Paulo, Editora Perspectiva.
Johnson, C.E., 1993. Children & Competition, North Carolina Cooperative Extension Service. Available at: http://www.ces.ncsu.edu/depts/fcs/pdfs/fcs404.pdf [Accessed April 18, 2011].
Juul, J., 2009. A Casual Revolution: Reinventing Video Games and Their Players, The MIT Press.
Juul, J., 2005. Half-Real: Video Games between Real Rules and Fictional Worlds, The MIT Press.
Juul, J., 2004. Introduction to Game Time. In Noah Wardrip-Fruin & Pat Harrigan, eds. First Person: New Media as Story, Performance, and Game. Cambridge, Massachussets: MIT Press, pp. 131–142.
Koster, R., 2004. Theory of Fun for Game Design 1st ed., Paraglyph Press.
McGonigal, J., 2011. Reality Is Broken: Why Games Make Us Better and How They Can Change the World, Penguin Press HC, The.
Salen, K. & Zimmerman, E., 2003. Rules of Play: Game Design Fundamentals, The MIT Press.
Schaeffer, J. et al., 2007. Checkers Is Solved. Science, 14, pp.1518–1522.
Suber, P., 1996. Nomic: A Game of Self-Amendment. Available at: http://www.earlham.edu/~peters/nomic.htm [Accessed April 18, 2011].
Suits, Bernard. The Grasshopper: Games, Life and Utopia. Toronto: University of Toronto Press, 1978.
Sutton-Smith, Brian. The Ambiguity of Play. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1997.
Tromp, J., John’s Connect Four Playground. Available at: http://homepages.cwi.nl/~tromp/c4/c4.html [Accessed April 18, 2011].